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domingo, 30 de setembro de 2012

Epopéia de Gilgamesh




Escrita na Suméria há 5 ou 6 mil anos,
a EPOPÉIA DE GILGAMESH é possivelmente
o primeiro texto literário preservado da humanidade.
Transcrevemos os fragmentos de maior interesse para nós.



1. Da “corrida ao ouro bíblico” à nova historicidade das sagradas escrituras.



Em meados do século XIX, após a descoberta na antiga cidade de Nínive da biblioteca do imperador assírio Assurbanípal (668-627 a.C.), o mundo redescobriu as antigas grandes civilizações da Mesopotâmia em tábuas de argila contendo escritos em sinais mais tarde denominados cuneiformes. Civilizações estas de que até então, o pouco que se conhecia estava contido nos livros da Bíblia, em informações “escassas e pouco reveladoras, uma vez que estavam diretamente relacionadas com a história do povo hebreu”.(CORREA, 200-, p. 2).


Tais descobertas deram início a uma espécie de “corrida ao ouro bíblico” que propunha evidenciar arqueológicamente as sagradas escrituras. Outras ruínas então, como as de Uruk, Ur e Nipur, começaram ser escavadas e revelaram mais inscrições sobre o passado do Oriente Próximo.







Detalhe das escavações em Ur
O trabalho de decifração destas tábuas foi realizado por vários pesquisadores, mas coube ao arqueólogo britânico George Smith, a primeira tradução contendo um trecho da Epopéia de Gilgamesh: o relato do dilúvio. Em 1872, Smith anuncia sua descoberta1 em um encontro da Sociedade de Arqueologia Bíblica causando um “forte impacto na Europa (...) por apresentar um texto pagão aparentemente antecipando a Arca de Noé”.(CORREA, 200-, p. 2).



Estas descobertas abalaram toda a comunidade científica e religiosa do século XIX, laicizando muitos dos objetivos iniciais, modificando métodos dos pesquisadores, e abrindo precedentes para o questionamento da veracidade dos textos bíblicos.


Nas últimas quatro décadas, diferentes estudos estão sendo realizados sobre os temas levantados no século XIX, tanto pela comunidade científica como em grande parte pela comunidade religiosa, fazendo com que sejam discutidos os elementos mitológicos presentes na confecção dos livros que compõe o Pentateuco2, que vão desde a formação do mundo à existência histórica dos seus patriarcas.


Tábua IX da Epopéia do Dilúvio





Há uma tentativa, nos dias atuais, por parte de arqueólogos e historiadores de remontar a bíblia separando o que é história do que são mitos e lendas.



"Apesar das paixões suscitadas por este tema, nós acreditamos que uma reavaliação dos achados das escavações mais antigas e as contínuas descobertas feitas pelas novas escavações deixaram claro que os estudiosos devem agora abordar os problemas das origens bíblicas e da antiga sociedade israelita de uma nova perspectiva, completamente diferente da anterior. (…) A história do antigo Israel e o nascimento de suas escrituras sagradas a partir de uma nova perspectiva, uma perspectiva arqueológica.” (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2001, pp. V-VI, p. 1).



2. Da teogonia à teofania.



Paralelamente às discussões bíblicas, as descobertas feitas pelas escavações remontam os três milênios que antecedem à Cristo, onde a região entre os rio Tigre e Eufrates viu a ascensão e queda de grandes civilizações como os sumérios, acádios, assírios e babilônicos.



Dos textos traduzidos, vários deles incompletos devido ao estado de conservação dos mesmos, pôde-se extrair muito da filosofia e da mitologia mesopotâmicas, onde podemos observar que “o Oriente antigo, antes da Bíblia, e mesmo abstraindo-se dela, não desconhecia a reflexão sobre o homem. (...) As questões fundamentais da existência, da felicidade e da infelicidade, da relação com as potências cósmicas e com o domínio misterioso dos deuses, do sentido da vida e das incertezas do destino, já tinham neles um lugar de grande importância”.(GRELOT, 1980, p. 13).



Neste universo de descobertas, os sumérios e os acadianos revelam-se fornecedores de costumes, rituais e modelos literários a todos os povos do Oriente Médio3. Suas lendas, se consideradas como o primeiro repositório das recordações históricas dos povos do oriente antigo, “se transformaram, se esquematizaram, se reagruparam, mudaram eventualmente de país, se ampliaram, às vezes, desmedidamente” (GRELOT, 1980, p. 13), onde cada cultura apropriou-se de um mito conforme a sua ótica4.



Não diferente desta regra, os israelitas inovaram ao excluir todo um panteão, centralizando sua fé num deus único, propondo uma desmitização do universo transformando as forças cósmicas ao que de fato são. A situação do homem diante de Deus modifica-se totalmente, “embora, na prática, a adaptação da mentalidade corrente dos israelitas a essa mudança radical se tenha processado lentamente e com dificuldade” (GRELOT, 1980, p. 15), mantendo grande parte do antigo modo de expressar religioso herdado dos sumérios e acádios.




Desta forma, Israel começa a escrever sua própria história, ora compilando fatos de seu próprio povo em grandiosas lendas, ora adaptando mitos antigos à sua realidade e aos seus propósitos. As histórias contidas na parte hebraica da bíblia, embora difíceis de serem datadas pelos anacronismos que ali apresentam5, foram compiladas e ordenadas “principalmente, no tempo do rei Josias (640-609 a.C.), para oferecer uma legitimação ideológica para ambições políticas e reformas religiosas específicas”.(FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2001, p. 14).







3. A Epopéia de Gilgamesh e sua influência sobre demais literaturas do mundo antigo.



Considerada a mais antiga obra literária da humanidade, a Epopéia de Gilgamesh na sua forma “tardia” (século VII a.C.) como é difundida no Ocidente (TIGAY6 citado por ZILBERMAN (1998, p. 58)), não foge à regra das obras de origens mesopotâmicas: um compilado de lendas e poemas, cuja origem e veracidade perdem-se na difusão oral, adaptação cultural e textos fragmentados.

As narrativas contidas na epopéia deviam ser muito populares em sua época, pois são encontradas em várias versões escritas por vários povos e línguas diferentes, sendo que as primeiras versões da mesma, datam do Período Babilônico Antigo (2000-1600 a.C.), podendo ter surgido muito antes7, pois o herói desta epopéia é o lendário rei sumério Gilgamesh, quinto rei da primeira dinastia pós-diluviana de Uruk, que teria vivido no período protodinástico II (2750-2600 a.C.).



Devido à sua antiguidade e originalidade, muito se especula sobre a influência desta sobre textos mais difundidos e conhecidos pela humanidade, como os poemas épicos gregos Ilíada e Odisséia de Homero, escritos entre VIII e VII a.C.. Mas a polêmica é maior quando se comparados às narrativas do Pentateuco, a parte mais antiga do Velho Testamento, datadas do Primeiro Milênio a.C.. No caso desta última, o que legitima-nos a observar as influências, além de semelhanças impressionantes, o próprio contexto histórico e geográfico. Contexto este em que a origem dos hebreus e das grandes civilizações semitas são mescladas com a própria história do povo sumério. Históricos períodos de cativeiro, onde a aculturação era, além de inevitável pelas circunstâncias de sobrevivência, uma forma de dominação ideológica:

“O povo dominado era absorvido pelos nativos ao serem levados, havia a destruição total da nacionalidade, do culto, das instituições, nada ficando que pudesse ser lembrado a fim de que jamais alguém se encorajasse a agir em favor de uma reconstrução. Todo o elemento que representasse qualquer valor moral ou intelectual era desterrado e em seu lugar era posto outro povo trazido de outras regiões.” (LOPES, 200-, p. 2).



4. A semelhança entre as narrações.





As semelhanças narrativas encontradas entre Epopéia de Gilgamesh e o Livro do Gênesis iniciam-se logo nos primeiros versículos da bíblia, ou seja, na criação do homem. O povo de Uruk, descontente com a arrogância e luxúria do rei Gilgamesh, exige dos seus deuses a criação de um homem que fosse o reflexo do rei, e tão poderoso quanto ele para que pudesse enfrentá-lo e redimi-lo. O deus Anu, ouvindo o lamento da população, ordenou a Aruru, deusa da criação, que fizesse Enkidu:



“A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu”.(SANDARS, 1992, p. 94).



“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”.(GENESIS, cap. 1, ver. 26).



“Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente”.(GENESIS, cap. 2, ver. 7).



Enkidu foi criado inocente, longe da malícia da civilização, vivendo entre as criaturas selvagens e compartilhando a natureza com elas:



“Ele era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra. Enkidu comia grama nas colinas junto com as gazelas e rondava os poços de água com os animais da floresta; junto com os rebanhos de animais de caça, ele se alegrava com a água”.(SANDARS, 1992, p. 94).



“Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. E a todos os animais da terra e a todas as aves dos céus e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento”. (GENESIS, cap. 1, ver. 29-30).



O rei Gilgamesh, sabendo da existência de Enkidu, incube uma missão a uma das prostitutas sagradas do templo da deusa Ishtar (deusa do amor e da fertilidade): seduzir Enkidu e trazê-lo para dentro das muralhas de Uruk. Enkidu deixou-se seduzir pela rameira e perdeu sua inocência, além de seu poder selvagem, tornando-se conhecedor da malícia do homem. Arrependido, lamenta-se, mas a rameira consola-o enfatizando as vantagens desta nova vida que está por vir:



“Enkidu perdera sua força pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam seu coração”.(SANDARS, 1992, p. 96).



“Olho para ti e vejo que agora és como um deus. Por que anseias por voltar a correr pelos campos como as feras do mato?” (SANDARS, 1992, p. 99).



“Porque Deus sabe que no dia em que comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.” (GENESIS, cap. 2, ver. 5).



Nesta comparação com a tentação no Éden, não identificamos diretamente os fatos, mas sim, as idéias. A prostituta sagrada, condenada também em outros livros da bíblia, pode ser compilada como o fruto proibido, a serpente e a própria Eva, com o poder de seduzir o homem e tirar sua inocência com falsas promessas.








Representação de Gilgamesh e Enkidu
Enkidu, já na cidade de Uruk, enfrenta o rei Gilgamesh em combate. Vencendo-o, é reconhecido pelo rei como irmão, pois este jamais havia enfrentado alguém com tamanha força. Formando-se então uma grande amizade que protagoniza grandes aventuras e tragédias ao longo da epopéia.






Gilgamesh e Enkidu partiram então para a floresta de cedros (provavelmente, o atual Líbano), onde enfrentaram o monstro Humbaba, a sentinela da floresta.






Este se irrita com Enkidu, por profanar a floresta sagrada dos cedros inferiorizando-o e humilhando-o com palavras semelhantes às palavras de Deus, ao condenar o homem por comer do fruto proibido. Novamente não vemos relação direta entre os fatos, mas uma linha comum de pensamento é verificada entre os textos onde, a profanação e a desobediência são punidas com a servidão:





“… tu, um mercenário, que depende do trabalho para obter teu pão!” (SANDARS, 1992, p. 119).



“… maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias da tua vida”.(GENESIS, cap. 3, ver. 16).



“No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado”.(GENESIS, cap. 3, ver. 19).



Os heróis, com a ajuda de Shamash (deus sol, protetor de Gilgamesh), matam o monstro Humbaba cortando-lhe a cabeça. Fato que irritou o poderoso Enlil (deus da terra, do vento e do ar universal), que exigiu a vida de um dos heróis pelo insulto.

A deusa Ishtar, vendo a força e beleza do herói, apaixona-se por Gilgamesh que a despreza, provocando a cólera da deusa. Então, Ishtar enviou a terra, um monstro com a missão de destruir o herói: o Touro Celeste. Mas a dupla de heróis novamente é vitoriosa. Então, Enkidu zomba da deusa derrotada atirando-lhe pedaços do touro mutilado. Enlil enfurecido com a atitude do mortal decide enfim qual dos dois heróis deverá morrer. Enkidu então adoece e, sucumbindo à doença, impulsiona o rei Gilgamesh a sua missão final: a busca da imortalidade.

A primeira semelhança encontrada pelos tradutores das tábuas em escrita cuneiforme é a mais impressionante. Foi a mola propulsora de toda a discussão sobre a veracidade dos textos bíblicos, pois a descrição do dilúvio não só é a mais bem conservada tábua de toda a epopéia, mas a mais rica em detalhes e semelhanças com a descrição no Gênesis. Além de que, outras narrativas do dilúvio foram encontradas em forma de poemas isolados e com outros personagens, como as tábuas de Atra-Hasis, a Epopéia de Erra, e os textos do rei Ziusudra9.



Na epopéia, Gilgamesh parte em busca da imortalidade, e para isso, precisa obter este segredo dos deuses com o imortal Utnapishtim (Noé do Gênesis). Para encontrar o imortal, Gilgamesh enfrentou uma longa jornada, cheia de perigos e provações. Ao encontrar Utnapishtim, ouve que este não poderá lhe tornar imortal, mas poderá revelar ao herói como se tornara um e conta do dia em que os deuses, desgostosos com a sua criação (a humanidade), resolveram eliminá-la da terra:



“Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: ‘O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.’ Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana”.(SANDARS, 1992, p. 149).

“Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração”.(GENESIS, cap. 6, ver. 5).



“A terra estava corrompida à vista de Deus, e cheia de violência”.(GENESIS, cap. 6, ver 11).



“Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis, e as aves do céu; porque me arrependo de os haver feito”.(GENESIS, cap. 6, ver 7).



Ea (deus da água doce e da sabedoria, patrono das artes e protetor da humanidade), avisa Utnapishtim em um sonho das intenções de Enlil e orienta-o de como sobreviver à catástrofe que estaria por vir:



“... põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deverás construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que seu comprimento, que seu convés seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas as criaturas vivas. (...) Eu carreguei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus parentes, os animais do campo – os domesticados e os selvagens – e todos os artesãos”.(SANDARS, 1992, p. 149-151).



“Faze uma arca de tábuas de cipreste; nela farás compartimentos, e a calafetarás com betume por dentro e por fora. Deste modo a farás: de trezentos côvados será o comprimento, de cinqüenta a largura, e a altura de trinta. Farás ao seu redor uma abertura de um côvado de alto; a porta da arca colocarás lateralmente; farás pavimentos na arca: um em baixo, um segundo e um terceiro”. (GENESIS, cap. 6, ver 14-16).



“… entrarás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos. De tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espécie, macho e fêmea, farás entrar na arca, para os conservares contigo”.(GENESIS, cap. 6, ver. 18).





Enlil então envia uma tempestade de grandiosas proporções, fazendo com que toda a terra desaparecesse sobre as águas:



“Caiu a noite e o cavaleiro da tempestade mandou a chuva.(...) Por seis dias e seis noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em guerra.” (SANDARS, 1992, p. 151-153).



“… nesse dia romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as portas do céu se abriram, e houve copiosa chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites”.(GENESIS, cap. 7, ver. 11-12).



E toda a humanidade foi exterminada:






“… agora eles (humanos) flutuam no oceano como ovas de peixe”. (SANDARS, 1992, p. 152).



“Assim foram exterminados todos os serem que havia sobre a face da terra …” (GENESIS, cap. 7, ver. 23).




Com o passar dos dias, a tempestade ameniza-se e o dilúvio começa a serenar:






“Na alvorada do sétimo dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o dilúvio serenou”.(SANDARS, 1992, p. 153).



“Deus fez soprar um vento sobre a terra e baixaram as águas. Fecharam-se as fontes do abismo e também as comportas dos céus, e a copiosa chuva do céu se deteve”. (GENESIS, cap. 8, ver. 1-2).



Após a calmaria do grande oceano que se formara, Utnapishtim solta uma pomba para ver se há terra firme para que então possa desembarcar:



“Na alvorada do sétimo dia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei uma andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas haviam abaixado; ela comeu, voou de uma lado para outro, grasnou e não mais voltou para o barco”.(SANDARS, 1992, p. 153).



“Ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela que fizera na arca, e soltou um corvo, o qual, tendo saído, ia e voltava, até que se secaram as águas sobre a terra. Depois soltou uma pomba para ver se as águas teriam já minguado da superfície da terra; mas a pomba, não achando onde pousar o pé, tornou a ele para a arca; porque as águas cobriam ainda a terra. Noé, estendendo a mão, tomou-a e a recolheu consigo na arca. Esperou ainda outros sete dias, e de novo soltou a pomba for a da arca. A tarde ela voltou a ele; trazia no bico uma folha nova de oliveira; assim entendeu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra. Então esperou ainda mais sete dias, e soltou a pomba; ela, porém, já não tornou a ele”.(GENESIS, cap. 8, ver. 6-12).





Após a bonança, já em terra firme e grato ao deus Ea por ter lhe salvo a vida, Utnapishtim prepara um sacrifício aos deuses:



“Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses”.(SANDARS, 1992, p. 153).

“Então Noé removeu a cobertura da arca, e olhou, e eis que o solo estava enxuto”.(GENESIS, cap. 8, ver 13).



“Levantou Noé um altar ao Senhor, e, tomando de animais limpos e de aves limpas, ofereceu holocaustos sobre o altar”.(GENESIS, cap 9, ver 20).



Enlil, furioso com Ea por ter permitido que um humano sobrevivesse e conhecendo o segredo dos deuses, viu-se sem alternativa que não a de transformar Utnapishtim em um imortal, para que sua maldição de que nenhum mortal sobrevivesse se completasse.



Gilgamesh desapontado por não ter tido sucesso em busca da imortalidade, prepara seu retorno para Uruk, mas é abordado pela esposa de Utnapishtim que, compadecida com o fracasso do herói, revela-lhe o segredo da imortalidade em que, nas profundezas do mar, havia uma planta maravilhosa, e quem a comesse, seria eternamente jovem. O herói então mergulha no mar profundo, ferindo-se, mas obtendo a tão desejado segredo.


Tomado de rara compaixão, Gilgamesh decide não comer sozinho o maravilhoso fruto, mas sim dividi-lo com os anciãos da cidade de Uruk. No retorno para casa, Gilgamesh é surpreendido por uma serpente marinha que lhe rouba a flor, perdendo para sempre o segredo da imortalidade:



“Se conseguires pegá-la (a planta sagrada), terás então em teu poder aquilo que restaura ao homem sua juventude perdida. (…) Vem ver esta maravilhosa planta. Suas virtudes podem devolver ao homem toda a sua força perdida. (...) mas nas profundezas do poço havia uma serpente, e a serpente sentiu o doce cheiro que emanava da flor. Ela saiu da água e a arrebatou”.(SANDARS, 1992, p. 160).



Apesar dos fins da ação de comer o fruto sejam diferentes (a morte e a imortalidade), podemos fazer uma analogia da função da serpente em roubar a imortalidade do homem: sendo tirando-lhe a oportunidade da vida eterna pela sua obtenção, como na Epopéia de Gilgamesh; sendo condenando-lhe a morte pela cessão do fruto ao homem, como no livro do Gênesis. Gilgamesh então ficou desolado e abatido, pois além de fracassar em sua missão, perdera para sempre o irmão Enkidu, restando-lhe apenas, melancolicamente esperar o dia de sua morte chegar.

No livro do Gênesis, não encontramos somente semelhanças com a Epopéia de Gilgamesh, mas com outros textos antigos, como o sumeriano Mito de Dilmum onde o deus Enki, o senhor das águas profundas e do abismo que suporta a terra; e Nintu, a virgem pura, deusa que presidia aos partos; habitavam sozinhos num mundo cheio de delícias sem que nada existisse além do par divino, caracterizando uma descrição muito semelhante do que seria e onde seria o jardim Éden:





“E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado. (...) E saía um rio do Éden para regar o jardim, e dali se dividia, repartindo-se em quatro braços. (...) O nome do terceiro rio é Tigre; é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto é o Eufrates”. (GENESIS, cap. 2, ver. 8-14).



5. Considerações finais.



É impossível afirmar a influência direta da Epopéia de Gilgamesh sobre a escrita do livro do Gênesis, pois tanto um como o outro poderiam ter sido influenciados por histórias ainda mais antigas e difundidas no Oriente, ao mesmo tempo em que é inegável que o mundo situado entre o Mediterrâneo e os Montes Zargos, onde havia intensa circulação de mercadores de diferentes etnias e religiões variadas, era pequeno demais para descartar qualquer influência cultural entre eles.



Os hebreus, possivelmente muito antes de seus períodos de cativeiro na Babilônia e Assíria, já tiveram contato com as lendas e mitos sumério-acadianos e que por várias razões, os utilizaram na formulação de suas próprias lendas, o que sugere que seu deus, Jeová, toma por empréstimo características de deuses como Anu, Enlil e Ea, seja criando a terra e o homem, seja julgando-os por seus atos, seja compadecendo-se de seu povo e os protegendo.


Acreditamos ser impossível obter conclusões definitivas sobre as influências de um texto sobre o outro, ou principalmente, da formação de um pensamento religioso sem a existência do pensamento antecessor, sem que se faça juízo de valores como é recomendado a um historiador, mas ao se estudar o contexto em que o Gênesis é idealizado e escrito, tomando aqui, palavras de Finkelstein e Silberman, observa-se que "a saga histórica contida na Bíblia (...) não foi uma revelação miraculosa, mas um brilhante produto da imaginação humana”.10





Notas



1SANDARS, N. K. A epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 11-12.



2Os 5 primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

3GRELOT, P. Homem quem és? São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 14.



4CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 211-238.



5FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001, p. 38.



6TIGAY, Jeffrey. On the evolution of the Gilgamesh epic. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982, p. 11.



7ZILBERMAN, Regina. Nos princípios da epopéia: Gilgamesh. In: BAKOS, Margaret Marchiori; POZZER, Katia Maria Paim. JORNADA DE ESTUDOS DO ORIENTE ANTIGO: LÍNGUAS ESCRITAS E IMAGINÁRIAS, 3., 1997, Porto Alegre. Anais ... trabalho 4. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 58.



8BOUZON, Emanuel. Ensaios babilônicos: sociedade, economia e cultura na Babilônia pré-cristã. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 126.



9CHARPIN, Dominique. El mundo de la biblia: Mesopotamia y la biblia. Valencia: EDICEP, 1984, p. 9.



10FINKELSTEIN; SILBERMAN. The Bible ... 2001. p. 13.







Referências Bibliográficas



BÍBLIA, V. T. Gênesis. Português. A bíblia sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. Cap. 1-9.



BÍBLIA, V. T. Gênesis. Português. A bíblia de Jerusalém. Tradução Theodoro Henrique Maurer Jr.. São Paulo: Edições Paulinas, 1985. Cap. 1-9.



BOUZON, Emanuel. Ensaios babilônicos: sociedade, economia e cultura na Babilônia pré-cristã. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.



CHARPIN, Dominique. El mundo de la biblia: Mesopotamia y la biblia. Valencia: EDICEP, 1984.



CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.



FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001.



GRELOT, P. Homem quem és? São Paulo: Edições Paulinas, 1980.



SANDARS, N. K. A epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 1992.



ZILBERMAN, Regina. Nos princípios da epopéia: Gilgamesh. In: BAKOS, Margaret Marchiori; POZZER, Katia Maria Paim. JORNADA DE ESTUDOS DO ORIENTE ANTIGO: LÍNGUAS ESCRITAS E IMAGINÁRIAS, 3., 1997, Porto Alegre. Anais ... trabalho 4. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.





Referências Eletrônicas



http://iraqipages.com/



CLOUGH, Brenda W. A short discussion of the influence of the Gilgamesh Epic on the bible. Disponível em http://www.sff.net/people/Brenda/gilgam.htm, 1999. Acesso em: 27 jul. 2003.



CORREA, Maria Isabelle Palma Gomes. Mitos Cosmogônicos: Suméria e Babilônia. Disponível em http://www.galeon.com/projetochronos/chronosantiga/isabelle/Sum_indx.html, 200-. Acesso em: 18 ago. 2003.



LOPES, Fabiano Luis Bueno. Exílio e retorno dos judeus na Babilônia. Disponível em http://www.galeon.com/projetochronos/chronosantiga/fabiano/fab_ind.htm, 200-. Acesso em: 18 ago. 2003.



SUBLETT, Kenneth. Epic of Gilgamesh. Disponível em http://www.piney.com, 2003. Acesso em: 27 jul. 2003.

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Gilgamés ou Gilgamesh





Gilgamés viveu a muito mais de 3000 anos antes de Cristo, e este poema faz parte de um relato sobre um dilúvio que houve sobre a Terra, e que deuses advertiram sobre a catástrofe. A viagem descrita foi feita por Ekidu a Gilgamés que segundo o mesmo, voou nas garras de bronze de uma águia.

O efeito da força gravitacional no corpo humano decerto foi sentido por Ekidu, amigo de Gilgamés, rei de Uruk na Babilônia, hoje Iraque.

Veja o poema que ele escreveu e entenda que há muitos mistérios que a ciência precisa desvendar e é a maior fonte de inspiração para todos aqueles que nao acreditam na historia, dita oficial, que nega a existencia de civilizações muito mais evoluidas que a nossa no passado que foram exterminadas por alguma força muito poderosa.Nela tambem os ufologos vem a prova da existencia de vida inteligente que visitam a Terra de tempo em tempos.Como explicar que um povo semi primitivo pudesse descrever a Terra como descreve os cosmonaltas modernos?????????????????

Poema de Gilgamés





"Ela me falou:

Olha para baixo sobre a Terra!

Que aspecto tem?

Olha para o mar!

Como te parece?

E a Terra era como uma montanha, e o mar como uma poça d'água.

E novamente voou ela mais alto e me falou:

Olha para baixo sobre a Terra!

Que aspecto tem?

Olha sobre o mar!

Como te parece?

E a Terra era como um jardim, e o mar como um córrego.

E voou além:

Olha para baixo sobre a Terra!

Que aspecto tem?

Olha sobre o mar!

Como te parece:

E a Terra parecia um mingau de farinha, e o mar era como uma barrica d'água"

Gilgamés viveu cerca de 3000 anos antes de Cristo, e este poema faz parte de um relato sobre um dilúvio que houve sobre a Terra, e que deuses advertiram sobre a catástrofe. A viagem descrita foi feita por Ekidu a Gilgamés que segundo o mesmo, voou nas garras de bronze de uma águia.



APRESENTAÇÃO DE GILGAMESH:

Proclamarei ao mundo os feitos de Gilgamesh. Esse foi o homem a quem todas as coisas foram conhecidas; o rei que conheceu os países do mundo. Foi sábio, viu mistérios e conheceu coisas secretas, e nos trouxe a história dos dias antes do dilúvio. Fez uma longa viagem, ficou fatigado, exausto de trabalhos, e retornando descansou, e gravou numa pedra a história toda.

Quando os deuses criaram Gilgamesh, deram-lhe um corpo perfeito. Shamash o Sol glorioso dotou-o de beleza, Adad o deus da tempestade dotou-o de coragem, os grandes deuses fizeram sua beleza perfeita, sobrepassando a todos outros, terrífico como um grande touro selvagem. Dois terços lhe fizeram deus e um terço homem.(...)




GILGAMESH SONHA COM A VINDA DE ENKIDU:



Ora, Gilgamesh se levantou a contar seu sonho a sua mãe, Ninsun, uma entre os deuses sábios. "Mãe, tive um sonho esta noite. Eu estava cheio de alegria, os jovens heróis estavam ao redor de mim e eu caminhava pela noite sob as estrelas do firmamento - e uma delas, um meteoro da substância de Anu, caiu do céu. Eu tentei levantá-lo, mas se mostrou pesado demais. Todo o povo de Uruk se juntou ao redor para vê-lo. As pessoas comuns se acotovelavam e os nobres se atropelavam para beijar seus pés. E para mim sua atração era como o amor de mulher. Ajudaram-me, eu cingi minha frente e o ergui com correias e o trouxe para ti, e tu o declaraste meu irmão."

Então Ninsun, a bem-amada e sábia, disse a Gilgamesh: "Essa estrela que desceu como um meteoro do céu; que tentaste levantar mas achaste demais pesada, quando tentaste movê-la ela não cedia, e então a trouxeste a meus pés - eu o fiz para ti, uma espora, e tu foste atraído como se fosse por uma mulher. Esse é o camarada forte, o que traz auxílio ao seu amigo em necessidade. É a mais forte das criaturas selvagens, da substância de Anu; nasceu nas pastagens e foi criado pelos montes selvagens; quando o vires ficarás contente, o amarás como se a uma mulher e ele nunca te rejeitará. Este é o significado do sonho."

Gilgamesh disse: "Mãe, sonhei um segundo sonho. Nas ruas da cidade fortificada de Uruk estava um machado; sua forma era estranha e o povo se aglomerava ao redor. Eu o vi e fiquei feliz. Curvei-me, profundamente atraído por ele; eu o amei como a uma mulher e o passei a levá-lo em meu flanco." Ninsun respondeu: "Esse machado, que viste, que te atraiu tão poderosamente como o amor de uma mulher, esse é o camarada que eu te dou, e ele virá em sua força como um das hostes celestes. Ele é o bravo companheiro que socorre seu amigo em necessidade." Gigamesh disse a sua mãe: "Um amigo, um conselheiro, me foi mandado de Enlil, e agora eu serei seu amigo e o aconselharei."


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A épica de Gilgamesh

S. Caticha Ellis






S. Caticha Ellis nos fala sobre o Cantar de Gilgamesh, canto épico que narra as façanhas do Rei-Herói, Gilgamesh, da antiga cidade de Uruk.



Este assunto foi tema de conferência proferida na Academia Campineira de Letras e Artes.





A realização de uma obra de arte, perdurável através dos séculos, é um dos mais notáveis "milagres" feitos pelo homem. É a realização intelectual e artística cuja verdadeira origem permanecerá largamente incompreendida.



Há nove mil anos, um sumério inventava a escrita e inaugurava a Era Histórica. É interessante salientar as notáveis conquistas intelectuais e materiais desse povo, inventor da escrita, fundador da civilização, iniciador da tradição intelectual do Oriente e do Ocidente, e berço das artes, das letras e das ciências.

A Literatura Suméria, a mais antiga conhecida pela humanidade, é paradoxalmente a que mais demorou a ser conhecida pelo homem moderno. Seu estudo foi iniciado após a descoberta da escrita e do povo sumério em meados do século passado. Está documentada em milhares de tabuletas de argila escavadas nas cidades mesopotâmicas. A maior parte desta literatura era formada de poemas de mitos e lendas, cantares épicos, documentos historiográficos, ensaios curtos e longos, dizeres e provérbios, assim como hinos e lamentações provavelmente usados nos cultos religiosos.



Cantar de Gilgamesh

O Cantar de Gilgamesh , considerada a obra-prima da literatura suméria, é um canto épico que narra as façanhas do Rei-herói, Gilgamesh, da antiga cidade de Uruk, na Mesopotâmia. O tema central vai além da narração de viagens, lutas e aventuras, temores e sonhos do protagonista: canta-se à amizade, ao amor, aos sentimentos de vingança, fala-se de opressão, de arrependimento e, acima de tudo, do temor à desaparição final e ao esquecimento após a morte. Este último é que leva Gilgamesh a uma procura insólita, desesperada e falida, mas não inútil, pela sua transcendência, da imortalidade.

Gilgamesh, talvez, o primeiro personagem histórico, viveu em torno do ano 2700 a.C., reinou em Uruk (a Erech bíblica) e construiu suas muralhas. Na lendária relação dos reis sumérios, ele é o sexto rei após o Dilúvio.

A obra em si parece, às vezes, obscura, principalmente por ser conhecida de forma incompleta. A mais antiga versão existente do Cantar foi escrita em sumério, por volta do ano 2000 a.C., sendo cópia de trabalho muito mais antigo. No próprio Cantar consta que, após retornar de suas viagens, o próprio Gilgamesh o escreveu, numa estela de pedra que colocou na base das muralhas de Uruk. Teria, desta forma, sido escrito poucos séculos (quatro a seis?) após a invenção da escrita.

Ponto de partida da literatura universal, a obra surge tão evoluída que, ainda hoje, mesmo separados pela barreira de 47 séculos, pela diferença de sensibilidade e pela nossa cultura moderna, configura-se uma leitura apaixonante, ainda que pouco conhecida fora dos círculos acadêmicos.

Ela nos toca não apenas pela sua beleza, mas também pela sua criatividade temática e técnica; os efeitos e técnicas poéticas que utiliza são invenções da literatura suméria, que a civilização atual continua usando, aperfeiçoados nos quatro a cinco milênios transcorridos:




O uso da métrica e da rima era desconhecido, mas praticamente todos os demais artifícios e técnicas poéticas foram usados com habilidade, imaginação e efeito: repetição e paralelismo, metáfora e símil, coro e refrão. Na narrativa poética suméria, contos épicos e míticos, por exemplo, abundam os epítetos estáticos, longas repetições, fórmulas recorrentes, longas e demoradas descrições e longos discursos. (Kramer, Os Sumérios, sua História, Cultura e Caráter, The Univ. of Chicago Press, 1963).



Esta e outras obras sumérias foram amplamente disseminadas, conhecidas e copiadas no Oriente Médio durante mais de dois milênios, recontadas e parcialmente incorporadas pelos escribas (e pelos nar ou aedas) em obras maiores. Grandes escritores usaram livremente temas sumérios, como no Gênese e no Livro de Jó, por exemplo, e também em obras muito posteriores do Ocidente, como a "Descida ao Inferno" retomada por Dante na Divina Comédia. Homero possui ampla dívida com os sumérios: temática, nas viagens de Ulisses, na descida aos infernos, e técnica, no uso de epítetos, a invocação e colaboração dos deuses e a convivência, amor e ódio, dos mesmos com os humanos e até a promessa de imortalidade àqueles a quem canta.

A existência desta obra-prima foi revelada pelo arqueólogo inglês George Smith que, em 1872, entre os restos da Biblioteca Real de Nínive, encontrou partes da descrição do Dilúvio Universal, semelhante mas muito anterior ao do Gênese do Antigo Testamento hebraico.




O Poema começa com o Elogio a Gilgamesh:






Ó! Divino Gilgamesh, que todo o viu
Eu te farei conhecer em todas as terras.
Eu ensinarei sobre (aquele) que experimentou todas as coisas.
Anu deu-lhe a totalidade do conhecimento do Todo.
Ele viu o Segredo, penetrou o Mistério.
Ele revelou o que houve antes do Dilúvio.
Ele fez grandes viagens, até o limite de suas forças
e quando voltou em paz...
Ele gravou numa estela de pedra a narração de suas proezas
e construiu as muralhas de Uruk, nosso lar,
e as paredes do Templo de Eanna, o sagrado santuário.
[...]






E, sobre o próprio Gilgamesh, diz:




Ele cruzou o oceano, os vastos mares até o sol nascente,
Ele explorou as regiões do mundo, buscando vida.
[...]
Dois terços dele são divinos, um terço é humano.
A grande deusa Aruru fez o modelo do seu corpo,
ela preparou sua forma...
... belo, o mais bonito dos homens,
... perfeito...
Gilgamesh é o pastor de Uruk, o refúgio,
decidido, eminente, conhecedor e sábio.
[...]



Gilgamesh, o Rei de extraordinária fortaleza e beleza, exerce seu poder às vezes com sabedoria, às vezes despoticamente: oprime os homens jovens e as mulheres de Uruk, sem que ninguém possa se lhe opor. Os deuses resolvem, então, criar um homem que seja o seu similar: Enkidu, o homem primitivo, nascido e criado nos campos entre as bestas selvagens, o mais forte dos homens. A partir desse momento deve-se produzir o encontro de Gilgamesh e Enkidu, isto é, da civilização com a barbárie. Enkidu vai enfrentar Gilgamesh que já o espera prevenido pelos seus sonhos, interpretados por sua mãe, a deusa Rimat-Nimsum. Depois de uma luta de titãs prevalece Gilgamesh, sendo reconhecido por Enkidu como seu superior. Tornam-se então amigos inseparáveis, transformando o mútuo respeito em verdadeira amizade que nunca haviam experimentado antes.

Gilgamesh convence Enkidu a viajar até a Floresta dos Cedros (no Líbano atual), com o intuito de matar o Guardião dos Cedros, Humbaba, o Terrível, cortar o Cedro Sagrado e obter glória e fama eternas. Apesar da oposição dos conselheiros, os amigos partem, confiantes na proteção do Deus-Sol, Shamash. Ao chegar à Floresta dos Cedros, Enkidu lembra o formidável poder de Humbaba e tenta convencer Gilgamesh a abandonar uma luta impossível e retornar. Mas Shamash os protege e, num trecho do Cantar de difícil compreensão, enfrentam Humbaba. Este é finalmente dominado pelos amigos, após uma luta de gigantes. Enkidu, temeroso das conseqüências de um revide, se deixarem Humbaba com vida, insiste que ele deve ser morto. O monstro amaldiçoa Enkidu condenando-o a ter curta vida e Enkidu, com seus braços formidáveis e sua enorme espada, corta a cabeça de Humbaba, despertando a ira do poderoso deus Enlil. Para aplacar o deus, Enkidu corta o maior dos cedros para com ele construir a Grande Porta do Templo de Enlil, em Nippur. Após terem cortado os cedros, iniciam o retorno e, à beira do Eufrates, constroem balsas que os levam de volta a Uruk. Enquanto Enkidu governa a balsa, Gilgamesh carrega triunfalmente a cabeça cortada de Humbaba.

De volta a Uruk, a bela Ishtar, deusa do amor, propõe casamento a Gilgamesh, mas ele recusa, após lembrar os trágicos destinos dos anteriores amantes da deusa. Ishtar, desprezada, é um inimigo temível; na sua ira ela pede ao seu pai, o deus Enlil, para enviar o Touro dos Céus e destruir Gilgamesh, sua gente e sua cidade. Contra toda expectativa, os dois amigos conseguem matar a besta. Ishtar apela à justiça dos deuses que, afrontados pela morte de Humbaba e agora pela do Touro, decidem que um dos amigos deve morrer e esse será Enkidu, já amaldiçoado pelo Guardião dos Cedros.

Enkidu fica sabendo de sua morte iminente por um sonho. Na sua comovente revolta frente à injustiça, apela ao deus Shamash que, em sábia resposta, o faz lembrar que deve agradecer pelas coisas boas que viveu e pelo profundo sentimento de perda que deixará atrás de si. Enkidu adoece e, apesar do cuidado constante e devotado de Gilgamesh, que é o mais sábio, morre após doze dias. Gilgamesh, arrasado pela perda do amigo, rende-lhe honras, constrói uma estátua em sua memória, rebela-se contra o destino e percebe que alcançar a fama entre os homens pouco ou nada significa frente ao horror do decaimento físico e da morte.

Gilgamesh rebela-se contra a Morte e dedica-se a procurar o segredo da vida eterna. Para tanto, decide procurar o único homem que a conseguiu – Utnapishtim, o Longínquo – o Noé sumério, a quem, após sobreviver ao Dilúvio, os deuses concederam vida eterna.

Numa viagem cheia de perigos, Gilgamesh encontra criaturas fabulosas e estranhas que o advertem da impossibilidade de sua procura, mas, com férrea vontade, continua e acha o barqueiro de Utnapishtim, que o levará ao encontro deste através das Águas da Morte. Quando, finalmente, o encontra, após jornadas agonizantes, é surpreendido, pois em vez de encontrar um ser extraordinário, cujo segredo de imortalidade estava disposto a tomar pela força, encontra um homem comum. Perplexo, diz:


Estava decidido a lutar com você,
Mas agora meu braço pende inútil perante você.
Diga-me, como é que você, na Assembléia dos Deuses, achou a vida eterna?



E Utnapishtim responde:


Eu te revelarei, Gilgamesh, o que é secreto,
Dir-te-ei um segredo dos deuses!






Utnapishtim revela então o que aconteceu no Dilúvio e como ele com a sua família, parentes, amigos e animais foram salvos pela sua piedade e obediência ao deus Ea (nome sumério do deus Enki, deus das águas doces e criador do homem e da sabedoria). O deus Ea, após a terminação do Dilúvio, intercede a favor de Utnapishtim perante o poderoso deus Enlil, o guerreiro. Este, que ordenou o Dilúvio, fica irritado pela sobrevivência dos humanos e suspeita da lealdade de Ea que, argumentando eloqüentemente, convence-o de que não revelou o segredo. Enlil perdoa Utnapishtim e ainda o converte, bem como a sua mulher, em seres imortais.






Terminado o relato do Dilúvio e, frente à determinação de Gilgamesh, Utnapishtim lhe diz:




Então, quem convocará agora (a Assembléia) dos deuses para ti,
para que possas achar a vida que procuras?
Mas, já que o desejas, submete-te à prova:
deves resistir ao sono durante seis dias e sete noites.






Gilgamesh, esgotado fisicamente pela penosa viagem, cai no sono logo e dorme sete dias seguidos. Ele falha no teste, sem dúvida devido à terça parte humana de sua natureza, e deve retornar.



Antes de voltar, a esposa de Utnapishtim intercede frente a este para dar a Gilgamesh uma recompensa pelos seus esforços, dizendo:


Gilgamesh chegou aqui cansado e com as forças esgotadas.
O que você lhe dará para que retorne à sua terra com honra?






E Utnapishtim, dirigindo-se a Gilgamesh, já no barco:




Eu te revelarei um segredo dos deuses, uma coisa secreta.
Embaixo da água existe uma planta,
ela tem espinhos como uma sarça,
como uma roseira ela te ferirá as mãos
Se conseguires apanhá-la, terás nas mãos a planta que rejuvenesce.



Gilgamesh mergulha no fundo do mar, colhe a planta e a segura, embora esta lhe ferisse as mãos. A planta lhe permitiria viver de novo a sua vida, com a vantagem da sabedoria adquirida na sua viagem que contém segredos dos deuses. Mas ele duvida e decide primeiro testar a planta com os velhos de Uruk e, depois, comê-la. Há aqui um curioso ponto de interrogação. Por que Gilgamesh não come a planta imediatamente? Teria desconfiado de Utnapishtim? Logo ele, que percorreu o mundo real e o fantástico para encontrá-lo?

Inicia o retorno, cruzando a porta do mundo que antes tinha franqueado. Quando param para descansar, à noite perto de uma fonte de águas frescas, Gilgamesh vai tomar banho e uma serpente, sentindo a fragrância da planta, silenciosamente sai das profundezas, apodera-se dela, muda logo de pele e submerge, para desespero de Gilgamesh que, impotente, a vê desaparecer nas profundezas.




Então Gilgamesh sentou-se e chorou,
Grossas lágrimas correram-lhe pelo rosto.
[...]
Encontrei o sinal da vida e agora o perdi.






A esperança acabou. Gilgamesh retorna ao lar, mais velho e de mãos vazias, tendo agora entendido que não existe a chance de uma segunda vida real e muito menos a de imortalidade.



No fim da viagem, já nas muralhas de Uruk, Gilgamesh, com voz estremecida, mostra a muralha a Ur-shanabi, o barqueiro.

Repete-se o início do Cantar, só que agora as palavras são ditas pelo próprio Gilgamesh. Desta vez trata-se realmente de um solilóquio: perdida a esperança da vida eterna, Gilgamesh relembra e faz uma retrospectiva de sua vida. Ur-shanabi é apenas um símbolo do povo, cuja aprovação final talvez seja seu único consolo:




Ó! Divino Gilgamesh, que todo o viu.
Ele viu o Segredo, penetrou o Mistério.
Ele revelou o que houve antes do Dilúvio.
Ele fez grandes viagens, até o limite de suas forças
e quando voltou em paz...
Ele gravou num estela de pedra a narração de suas proezas.






A seguir, com uma reprise dos elogios feitos no início, termina a XI tabuleta. A maioria dos autores preferem terminar aqui o relato. Contudo, na XII tabuleta encontram-se dois episódios importantes "A descida ao Inferno" e "A Morte de Gilgamesh", os mais antigos junto com a aventura da "Floresta dos Cedros". A "Morte de Gilgamesh" parece ser a repetição de fórmulas rituais fúnebres, possuindo então alto valor arqueológico. "A descida ao Inferno" pode ser uma variante do sonho de Enkidu, prevendo a sua morte.





A descida ao Inferno



O episódio começa de forma desconexa, com imagens e visões que pareceriam extraídas de um sonho. Depois de uma sucessão de imagens, quase incompreensíveis para a nossa sensibilidade moderna, temos:




A flauta e a harpa caíram na Grande Mansão (o inferno)
Gilgamesh enfiou nela sua mão, mas não pôde alcançá-las.
Enfiou o pé, mas não pôde alcançá-las.
Então Gilgamesh sentou-se frente ao palácio dos deuses do mundo subterrâneo,
derramou lágrimas e ficou com o rosto pálido.
Ó minha flauta, ó minha harpa!
Minha flauta cujo poder era irresistível!
Minha flauta, minha harpa, quem as trará dos infernos?



Enkidu se prontifica a ir aos infernos procurá-las. Gilgamesh dá-lhe então conselhos para facilitar o seu retorno, como o de não usar ungüentos perfumados, nem vestir roupas limpas, nem deixar o seu arco na terra etc., para que os espíritos não o prendam. Mas, confiando nas suas forças, Enkidu faz tudo errado e a terra "o pega":




O destino não o possuiu, nenhum espectro o possuiu, a terra o possuiu,
Não caiu sobre o campo de batalha, a terra o possuiu.



Gilgamesh tenta de todas as formas conseguir, através dos deuses, a libertação de Enkidu. Mas Enlil nem o escuta. Finalmente o deus Ea, criador e protetor dos homens, comanda ao deus dos infernos, Nergal:




Abre o fosso que comunica com os infernos,
Que o espírito de Enkidu volte dos infernos
e possa falar com seu irmão!



Aberto o fosso por Nergal:




O espírito de Enkidu, como um sopro, saiu dos infernos
E Gilgamesh e Enkidu falaram:
- Ó meu amigo, meu caro Enkidu,
diga-me a lei do mundo subterrâneo, você a conhece.
- Não, não te direi a lei que conheço.
Não te direi a lei para que não te sentes a chorar!
- Seja assim. Quero sentar-me e chorar!



Então, seguem-se as revelações que Gilgamesh mais teme:




Aqueles que quiseste, os que eram gratos a teu coração,
todos os que acariciaste,
estão agora roídos pelos vermes,
estão cobertos de pó.
Seus espíritos não têm descanso nos infernos.



Os detalhes deveriam ser muito atemorizadores para o espírito sumério da época e nos lembram passagens do "Inferno" da Divina Comédia de Dante.

Não há retorno real de Enkidu, que, vítima de sua fidelidade e por não ter respeitado a sabedoria dos conselhos de Gilgamesh, que representa o Saber e a Ciência, deverá ficar para sempre nos infernos.



Morte de Gilgamesh




O destino de Gilgamesh, decretado pelo pai dos deuses, Enlil, está cumprido:
Na Terra inferior, na casa das trevas, uma luz o iluminará,
Nenhum homem famoso uma lembrança como a dele deixará,
As gerações futuras não terão uma lembrança que se compare à dele.
[...] sem Gilgamesh não haverá luz.
Ó Gilgamesh, foi-te dada a realeza segundo o teu destino.
A vida eterna não era teu destino.



Humildes e poderosos da cidade choram a morte de seu herói e protetor. Esposa e filho, concubinas, músicos, bufos, todos os que comeram de sua mesa, servos, mordomos e os que viveram no seu palácio pesam as suas oferendas para Gilgamesh e para Ereshkigal, a Rainha da Morte e para os deuses dos mortos.




O destino falou. Qual um peixe preso no anzol,
Gilgamesh está deitado em seu leito,
Como gazela presa no laço
[... ]






Gilgamesh, filho de Ninsun, está em seu túmulo
No altar das oferendas ele pesou o pão,
No altar das libações ele verteu o vinho.
Nesses dias partiu Gilgamesh, filho de Ninsun
o rei, nosso senhor, sem igual entre os homens,
Aquele que não faltou a Enlil, seu deus.
Ó Gilgamesh, senhor de Kullab, grande é a tua glória!



Termina assim a Épica mais antiga da humanidade. Não só com a morte física do herói, mas com o seu fracasso na procura pela vida eterna.

Gilgamesh morre junto com os seus sonhos, mostrando assim que é humano. A partir dessa verificação, só lhe resta voltar à sua amada Uruk, para deixar a marca perene de sua existência.

Morta a esperança, Gilgamesh alenta nas suas façanhas, e por isso é que faz sua retrospectiva vital ao barqueiro Ur-shanabi, único a testemunhar sua luta impossível contra o destino efêmero dos humanos.

Por isso é que escreve na pedra o que viveu na vida:




Ó Gilgamesh, foi-te dada a realeza segundo o teu destino.
A vida eterna não era teu destino.
Quando os deuses criaram o homem
deram-lhe como atributo a Morte,
mas a Vida, a Vida Eterna, essa, só ficou para eles.



Este poderia ser o epitáfio na lápide de Gilgamesh, a gigantesca figura que, através dos séculos, marca a despedida definitiva da Humanidade da escuridão impenetrável da Pré-História, que ainda se entrevê nos detalhes do relato do sábio Utnapishtim do mundo antes do Dilúvio Sumério.

Gilgamesh não atinge a imortalidade fútil dos deuses sempiternos que, na sua imobilidade, mais semelham a morte do que a vida. Ele atinge a imortalidade dos arquétipos humanos na memória dos seus iguais, os homens. Obras materiais, como a muralha de Uruk, persistem após 47 séculos de história de uma das regiões mais conturbadas do mundo. Mas ele perdura pela sua constante procura da essência da eternidade, pela consciência insigne de seu conhecimento, pelo que gravou na pedra e impregnou na mente das gerações que o seguiram, cumprindo assim as proféticas linhas finais do poema.

Ele perdura porque a história de sua ciência, de sua força de vontade e de sua coragem nos foram transmitidas – talvez por ele mesmo – e porque elas encarnam o ideal humano de uma vida onde cada obstáculo dá origem a um novo esforço que o leva à contínua superação.

Como Modelo Literário, o Cantar teve as maiores conseqüências imagináveis. Conhecido de toda a antigüidade, ele foi imitado e inspirou obras-primas que conhecemos muito antes, como o Gênese do Velho Testamento hebraico e a Odisséia.

O Cantar, conhecido até poucos séculos depois de Cristo, perde-se com a decadência e desaparecimento da Babilônia. Ele é reencontrado nas escavações feitas por volta de 1860, por arqueólogos ingleses em Nippur e alemães em Uruk (atual Warka) e depois na própria Babilônia. Assistimos, aos poucos, ao renascimento de Gilgamesh...

E, talvez, essa seja a chance que a história, reencarnando a "planta do rejuvenescimento" de Utnapishtim, dá a Gilgamesh:

viver sua segunda vida na memória e na imaginação do homem moderno.

Ele conquistou a imortalidade da espécie, devido à terça parte humana de sua constituição, a mesma que, paradoxalmente, lhe impediu de atingir o eterno absoluto dos deuses.

Mas, não é isso mesmo o que o poeta lhe promete no início do Cantar?

Mas, eterno é o poeta ou a personagem?

Poeta e personagem identificam-se e, enquanto nos contemplam, com a perspectiva de 47 séculos e a condescendência que dá a longa intimidade com o transcurso milenar do tempo, cada um eterniza-se no outro e na mente e na imaginação dos demais homens.

autor: O autor nasceu numa pequena cidade, Melo, no Uruguai. Estudou na "Universidad de la República" em Montevidéu onde graduou-se em Engenharia Elétrica e Mecânica. Com uma bolsa do British Council e outra da UNESCO, estudou na Glasgow University e no Cavendish Laboratory da Cambridge University.

No Brasil, em 1968, torna-se Chefe de Pesquisas do Instituto de Energia Atômica em São Paulo e Professor de cursos de Pós-Graduação na Universidade de São Paulo e, em 1971, Professor Titular de Física do Instituto de Física. Publicou pouco mais de 200 trabalhos originais em revistas internacionais, orientou 25 doutores e mestres em Física. Apresentou suas pesquisas em Congressos e em seminários em universidades da Europa, América do Sul e do Norte e na Ásia.

Aposentou-se em 1991 mas continua publicando trabalhos de pesquisa. Professor Honorífico da Universidade Autônoma de Madrid (1976), Acadêmico da Academia Campineira de Letras e Artes, membro de várias academias científicas.



Matéria publicada em 01/06/1999

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GILGAMESH- A HISTORIA

Até o século XIX a Ilíada e a Odisséia eram considerados os mais antigos poemas épicos que haviam chegado até nós. Com as descobertas arqueológicas foi trazida à luz a biblioteca do rei Assurbanipal, o último dos grandes reis do Império Assírio.


Desta biblioteca provém a edição mais completa da Epopéia de Gilgamesh, escrita em tabuinhas de argila, aproximadamente no séc VII a.C., em acádio, uma antiga língua semita falada na região.
Línguas semitas são línguas como o hebraico e o árabe. Ou seja, a versão mais recente e completa desta antiga epopéia é apenas um século posterior a provável data de composição dos poemas homéricos.
Mas outras investigações nos dão boas razões para crer que esta epopéia já estava escrita aproximadamente no séc. XVIII a.C. e que sua origem deve remontar a um ciclo de poemas transmitidos oralmente de aproximadamente 2230-2200 a.C., sendo portanto a epopéia mais antiga da qual temos conhecimento, e que narrava as façanhas de Gilgamesh, possivelmente um dos primeiros reis históricos da cidade suméria de Uruk, a Erech do Velho Testamento, depois do Dilúvio.




Versões em diferentes línguas foram também encontradas no Oriente, por exemplo, há uma versão em hitita, antiga língua anatólica (da região da atual Turquia), que circulou entre 1700 e 1000 a.C., portanto anterior às epopéias gregas e em uma região bem próxima.
A cronologia desse poema épico em resumo seria a seguinte:




- 2800-2700 a.C.: possível existência histórica de um rei sumério, da cidade de Uruk (ver mapa abaixo), chamado Gilgamesh.
- 2230-2200 a.C.: provável data de criação da primeira versão oral da epopéia, em sumério.
(note que aproximadamente 500 anos após os fatos históricos, como no caso de Homero)
- 2000-1700 a.C.: primeira versão escrita em sumério, mais antiga língua escrita conhecida.
(eram então provavelmente poemas separados, compostos e recitados oralmente)
- 1700-1000 a.C.: versão hitita, próxima a região de fala grega.
- séc. VII a.C.: tradução definitiva para o acádio, a chamada "epopéia assíria".
Esta versão, que é a nossa fonte mais importante, está incompleta, com aproximadamente dois terços do total da obra.




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O estudo da Antigüidade e o problema das fontes
Maria Isabelle Palma Gomes Corrêa






Muitos obstáculos acompanham o estudioso das ciências humanas em sua aventura pelos caminhos do conhecimento. As questões que se impõe no decorrer da pesquisa vão desde os mais sutis entraves teórico-metodológicos (nem sempre perceptíveis nos momentos iniciais do trabalho) até os problemas com a documentação. Quando se trata de pesquisas referentes ao mundo antigo, além dos empecilhos conceituais, o problema das fontes é quase que imediatamente arrolado como a primeira etapa essencial para a efetivação do estudo futuro. Desse modo, o primeiro questionamento a ser levantado quando o pesquisador intenciona a elaboração de uma tese acadêmica sobre a Antigüidade diz respeito à existência e ao acesso à fonte histórica. Embora exista uma relativa abundância de documentação que permita a análise conjuntural do universo histórico-cultural do homem antigo, no Brasil há ainda uma certa resistência na elaboração de pesquisas que enfoquem civilizações arcaicas cujo desenvolvimento dos seus centros urbanos tenha se processado fora do continente americano, como Europa, Oriente Próximo e Extremo Oriente. Isso se deve, por um lado, pela dificuldade em adquirir a transcrição dos documentos originais, já que a maioria das edições são importadas e com elevado custo para aquisição. Por outro lado, há também a questão epigráfica, na medida que nem todo estudioso de determinado período ou civilização tem o conhecimento necessário para a decifração das “misteriosas” escritas antigas. Em parte, este problema poderia ser resolvido com a utilização de boas traduções em português ou língua estrangeira moderna. Contudo, as pesquisas com um profundo teor acadêmico exigem do pesquisador o manuseio das fontes em seu registro original, o que significa leitura e análise da documentação nas formas lingüísticas em que foi composta.
Objetivando sanar algumas das dificuldades relacionadas às fontes históricas da Antigüidade oriental (especialmente em relação às fontes mesopotâmicas que versam sobre as narrativas do grande rei Gilgamesh de Uruk), este artigo busca referenciar brevemente algumas obras que complementam e ampliam a produção historiográfica do mundo antigo.
O Épico de Gilgamesh (assim chamado pelos assiriólogos em geral por narrar a história e os feitos de um personagem semidivino) contou com uma série de registros provenientes de inúmeras regiões do Crescente Fértil (já no século XIX d.C. os arqueólogos encontraram recensões do texto epopéico entre os vestígios das populações sumérias, cassitas, assírias, hititas e amoritas, sem contar as diferentes variações da história em fragmentos de outros mitos, desde o período sumeriano mais antigo até o helenístico mais recente). Embora seja possível notar a grande difusão literária que as narrativas sobre Gilgamesh alcançaram por todo o Oriente Próximo, a mais completa de suas versões é a do período cassita que foi preservada quase totalmente na biblioteca de Assurbanipal, em Nínive (a capital do império assírio).
Algumas boas e recentes traduções deste texto são aquelas compostas por Benjamin FOSTER e Andrew GEORGE, duas obras de qualidades indubitáveis. Ambas na língua inglesa, partem da fonte acadiana original num trabalho exaustivo e ainda assim de valor inestimável para a análise do conteúdo epopéico. Na tradução proposta por FOSTER, encontramos também a tradução dos cinco poemas sumérios relativos ao herói Gilgamesh (traduzido por Douglas Frayne) e a versão hitita da Epopéia (traduzida por Gary Beekman). A obra de Andrew GEORGE traduz, além da versão padrão do Épico e dos poemas sumérios, outros textos do segundo milênio a.C. encontrados na Babilônia e em sítios arqueológicos localizados em Hattusa, Emar, Megiddo e Ugarit.
Em português temos a clássica versão da Epopéia traduzida por Carlos Daudt de Oliveira a partir da versão inglesa estabelecida por N. K. Sandars. Embora constitua uma composição literária interessante, a forma poética original da narrativa foi alterada na medida que o autor optou pela prosa e não pelos versos como registrado na Antigüidade. De qualquer maneira, mesmo sendo uma tradução que procura apresentar harmonia e coesão textual, a obra pode comprometer a pesquisa pelo fato de ser uma segunda tradução. Além dela, temos ainda a tradução para o português da professora Maysa Monção Gabrielli que parte igualmente de outras versões inglesas. Até o presente momento, a única tradução da Epopéia de Gilgamesh em português que toma por base a versão original acadiana está sendo realizada pelo professor Emanuel Bouzon (PUC/RJ), mas seu trabalho ainda está em fase de pré-publicação.
Para uma pesquisa mais aprofundada sobre a saga de Gilgamesh existe um documento editado pela Universidade de Helsinki sob orientação de Simo Parpola contendo a transcrição dos sinais cuneiformes e a correspondente transliteração. Uma obra de importância fundamental para aqueles que pretendem tomar a Epopéia de Gilgamesh como objeto de estudos e indagações vindouras. Segue abaixo a referência completa dos trabalhos aqui citados.


A EPOPÉIA de Gilgamesh. Tradução de Carlos Daudt de Oliveira. São Paulo : Martins Fontes, 1992.
A EPOPÉIA de Gilgamesh. Tradução de EMANUEL BOUZON. [2003?]. Em fase de pré-publicação.
GILGAMESH. Tradução de MAYSA MONÇÃO GABRIELLI. São Paulo : Cone Sul, 1998.
THE EPIC of Gilgamesh: a new translation, analogues, criticism. Translated and edited by BENJAMIN R. FOSTER. New York; London : Norton & Company, 2001.
THE EPIC of Gilgamesh; the Babylonian Epic Poem and Other Texts in Akkadian and Sumerian. Translated by ANDREW GEORGE. USA






INTRODUÇÃO
Rivakah Schärf Kluger
Este texto faz parte do livro O Significado Arquetípico de Gilgamesh de Rivakah Schärf Kluger. Agradecemos a Paulus Editora pela permissão de reproduzirmos este capítulo aqui . Conheça mais sobre este e outros livros da Paulus acessando a Revista de Literatura.






1. Os mitos são "assunto da alma"






A Epopéia de Gilgamesh, obra-prima da literatura mundial, é considerada uma das mais antigas epopéias do mundo. Ela é chamada epopéia, porém, como veremos, trata-se realmente de um mito. Para poder compreender um mito, a meu ver, é necessário ter um ponto de vista histórico a partir de duas perspectivas, por assim dizer, uma perspectiva exterior e uma perspectiva interior. A perspectiva exterior diz respeito à necessidade de compreender a forma histórica em que aparecem os arquétipos, o fundo histórico ao qual está relacionado o mito - em nosso caso, a cultura e a religião babilônica. O aspecto interior se refere aos problemas essenciais do tempo, com os quais essa época específica se envolveu conscientemente, ou nos quais a mesma época estava inconscientemente envolvida. Embora esta seja tarefa principalmente científica, acredito que, não obstante isso, se trata de um assunto de necessidade imediata para podermos entender esses documentos humanos em relação à nossa própria vida, pois todas as épocas históricas vivem em nós, e nós não podemos realmente nos entender a não ser que conheçamos as nossas próprias raízes espirituais.
Que época particular e que conteúdos espirituais em nós pelo inconsciente é, até certo ponto, questão de destino individual. Uma vez que a cultura ocidental se baseia em grande parte no judaísmo e no cristianismo, a cultura babilônica como uma de suas raízes pode ser considerada um interesse psicológico imediato para todos nós. Os arquétipos residem em seu domínio, além do tempo e do espaço. Isto constrói a ponte do entendimento entre os homens de todas as eras, e torna possível perceber que nós mesmos, com nossos problemas essenciais, estamos ligados inseparavelmente à continuidade dos problemas eternos da humanidade, como os mesmos são visualizados nos mitos. Mas a forma em que aparecem os mitos, a sua roupagem, por assim dizer, depende das condições históricas: os símbolos em que aparecem se alteram. No ser humano, essas mudanças correspondem ao desenvolvimento da consciência humana. No desenvolvimento de meu trabalho em torno deste tema significativamente rico, esta conexão se projetou cada vez mais em minha mente, de modo que eu desejaria defini-la como a idéia fundamental, como o ponto de partida da minha tentativa de explicar este mito.
Foi somente em 1872 que os estudiosos pela primeira vez se conscientizaram deste mito, quando o assirólogo inglês George Smith publicou "O relato caldeu do dilúvio", como ele intitulou sua tradução da décima segunda tabuleta da epopéia. Escavações feitas em Kouyunjik, a antiga Nínive, desenterraram muitos fragmentos, que foram em seguida enviados para o Museu Britânico de Londres. Descobertas posteriores, naquela região e em outros lugares, chamaram a atenção dos estudiosos na Europa e na América. Gilgamesh, Rei de Uruk - a Erech bíblica - foi pela primeira vez identificado com o caçador Nimrod, a cujo domínio, segundo o Gênesis 10.10, pertencia Erech (Arac). Somente depois é que se tornou claro, através das descobertas de material sumério mais antigo, que não se tratava exatamente disso. Como demonstrou o sumeriólogo americano Samuel Noah Kramer, a epopéia contém e combina elementos de mitos sumérios anteriores, que integram o material anterior isolado num único bloco. Os fragmentos sumérios mais antigos, descobertos nas cidades da Mesopotâmia de Nippur, Kish e Ur, remontam ao quarto milênio a.C.. O nome Gilgamesh mostrou ser sumério, e não semita. Os sumérios eram os mais antigos habitantes da Mesopotâmia que conhecemos. Até agora, sua linguagem não foi vinculada a nenhuma outra. Eles foram os inventores da escrita cuneiforme (em forma de cunha), que foi assumida pelos seus sucessores, os babilônios e os assírios, juntamente com toda a cultura suméria. Mas esses dois povos imprimiram na cultura suméria a sua própria marca particular, e as concepções semitas típicas foram igualmente inseridas na Epopéia de Gilgamesh.
A epopéia como tal é criação dos babilônios semitas, e os seus primeiros fragmentos pertencem aos assim denominado período babilônico antigo, isto é, durante a dinastia de Hamurabi, na primeira metade do segundo milênio a.C. Mas esta versão babilônica é muito fragmentária. Felizmente, cópias posteriores e elaborações ulteriores desses fragmentos foram encontradas nas escavações efutuadas em Nínive, na biblioteca de Assurbanipal, o último grande rei assírio, que reinou no 7º século a.C. A versão mais recente está escrita em doze tabuletas de argila e é o resultado de pelo menos 1.800 a 2.000 anos de trabalho sobre a epopéia. Fragmentos posteriores a partir de então vieram à luz, os quais encerram valiosas adições ao texto danificado e incompleto. Entre os mesmos, encontram-se também translações para o idioma hitita e hurriano. Um fragmento acadiano datado em torno do 14º século a.C. também foi encontrado em Meggido, Canaã, consequentemente, anterior à colonização israelita nesta área. Essas descobertas mostram como estava difundida a Epopéia de Gilgamesh, desde o sul da Babilônia até a Ásia Menor, e em que alta estima a mesma era tida.
Podemos supor que, da mesma forma como outros mitos e lendas populares, a Epopéia de Gilgamesh foi originalmente transmitida aos povos por via oral, recitada por rápsodos, como está indicado pelo seu estilo e pelas suas freqüentes passagens repetitivas, que imprimiam a mensagem na alma dos diferentes povos, onde a mesma passou por desenvolvimento e por transformações posteriores.
Exatamente que fontes particulares foram coletadas, e de que forma, não me parece ser mera questão casual. O autor ou os autores desta composição devem ter tido a sensação de que isto fazia sentido, como fizeram aqueles que a aceitaram dessa forma através de séculos. O fator combinante pode ser encontrado no incosnciente criativo daqueles que trouxeram os materiais diferentes em conexão uns com os outros. Assim, buscar uma interpretação psicológica desta epopéia antiga, tão plena de significado, parece ser um empreendimento justificado. Os mitos são "assunto da alma", assim como os sonhos, e requerem interpretação simbólica e uma tradução.
A partir da descoberta de Jung do inconsciente coletivo e de seus conteúdos, os arquétipos (as formas típicas básicas do pensamento e sentimentos humanos e as reações subjacentes e determinantes da variedade ilimitada de experiências individuais), uma nova luz incidiu na essência dos mitos. Ao descobrir motivos mitológicos que emergem dos sonhos do homem moderno, Jung reconheceu que os mitos, da mesma forma que os sonhos, são manifestações do inconsciente. Tornou-se evidente, na prática, que apresentar paralelismos mitológicos como uma amplificação de sonhos arquetípicos não só aprofunda o entendimento desses últimos, mas também leva a um entendimento psicológico mais profundo do mito. A sua obra que abriu caminho neste sentido, Symbols of Transformation (Símbolos de Transformação), lançou os fundamentos para um campo mais vasto na pesquisa psicológica sobre os mitos e a sua relevância para o homem moderno.
2. Os mitos e o crescimento da consciência humana
Quanto à sua origem, da mesma forma como os sonhos, os mitos são expressões espontâneas do inconsciente. Como demonstrou Jung, da mesma forma como os sonhos estão relacionados, numa forma compensatória, ao estado atual da consciência do indivíduo, assim também os mitos, podemos presumir, estão relacionados ao estado coletivo da consciência de determinada era da história. Poderíamos presumir que seja o ego coletivo da tribo ou daquele povo, isto é, as crenças e as atitudes sustentadas em comum, a consciência coletiva. Entretanto, isto leva a outra questão, que é importante para a interpretação de um mito assumido como sonho coletivo: não existe ego individual ao qual se possa apelar para associações que ajudem a estabelecer um contexto em que ocorre o sonho. Como podemos interpretar um mito sem o aspecto particular de referência que temos para os sonhos individuais na pessoa daquele que sonha? Neste caso, o único contexto disponível é a cultura daquela época em que surgiu e foi avaliado o mito. Os mitos, por conseguinte, são como reflexões ou imagens de espelho de certas situações culturais da humanidade, e, assim como grandes sonhos arquetípicos individuais, eles contêm intuições e previsões profundas de desenvolvimentos posteriores, e, assim, eles podem ser considerados marcos miliários no desenvolvimento da consciência humana.
Quando interpretamos um sonho individual, podemos olhar para as figuras que nele ocorrem (além da figura do próprio indivíduo que sonha, que geralmente representa seu ego) sob o aspecto do seu assim denominado significado objetivo ou subjetivo, este último referindo-se ao aspecto interior e em grande parte inconsciente da personalidade daquele que sonha. Quanto mais coletivo e arquetípico o sonho, tanto mais se insinua o nível subjetivo da interpretação. Isto vale ainda mais para o caso do sonho, no qual, para começar, não existe um ego individual de um sonhador ao qual se referir. Mas existem indivíduos, divinos e humanos, que aparecem e agem no mito, e os mesmos podem ser interpretados como aspectos da totalidade projetada da psique humana, seja ela individual ou transmitida pela comunidade, a coletiva. No caso do mito do herói, em particular, existe um caráter, o herói, que é o autor numa seqüência contínua de eventos. O herói pode, portanto, ser considerado a previsão de um desenvolvimento da consciência do ego, e a sua atuação no mito, uma indicação do processo de movimento rumo à totalidade que está implícita e inata na psique; no indivíduo, o processo de individuação. Esta é, aparentemente, a razão porque os sonhos arquetípicos ocorrem com freqüência em momentos cruciais de nossa vida, em estados de transição. Mitos antigos podem então tornar-se não apenas amplificações valiosas para tais sonhos, mas a própria chave para a sua interpretação. Pois nós, consciente ou inconscientemente, estamos vivendo ou sendo vividos por padrões arquetípicos, e são as imagens mitológicas as que geralmente estão por trás das experiências mais profundas de significado em nossa vida.
Não parece ser mero acaso o fato de que, nos tempo modernos, tenham-se multiplicado publicações em torno da Epopéia de Gilgamesh, não só no campo da assiriologia, mas também nas obras poéticas, nas composições literárias e nas representações artísticas. É como se o nosso tempo tivesse que encontrar o seu próprio entendimento de buscar o significado ou o lugar específico da nossa própria era histórica, no processo de uma amplificação crescente da consciência, que é o sentido último e a meta última do mito.




Como afirmou Jung em sua introdução à "Psicologia do arquétipo infantil" (part. 267):
"... nunca podemos legitimamente nos desligar dos nossos fundamentos arquetípicos, a não ser que estejamos preparados para pagar o preço de uma neurose, assim como não podemos nos desfazer do nosso corpo e dos seus órgãos sem cometer o suicídio. Se não podemos negar os arquétipos ou, de outra forma, neutralizá-los, nos defrontamos, em cada novo estágio de diferenciação da consciência à qual chega a civilização, com a tarefa de encontrar uma nova interpretação apropriada para esta etapa, a fim de conectar a vida do passado que ainda existe em nós com a vida do presente, que ameaça fugir da mesma. Se esta união não se realiza, surge uma espécie de consciência sem raízes, não mais orientada para o passado, consciência que sucumbe impotente a toda forma de sugestões e, na prática, é susceptível a uma epidemia psíquica."
Até que ponto "a vida do passado ainda existe em nós", iremos descobrir à medida que continuarmos a nossa investigação psicológica da Epopéia de Gilgamesh. Por causa do estado fracionado e danificado das tabuletas, o texto apresenta muitas lacunas, o que deixa muitas questões em aberto, cuja solução precisa aguardar a descoberta dos fragmentos adicionais da epopéia. Mas o fascínio exercido pela Epopéia de Gilgamesh, radicado em sua profundeza psicológica, supera todos esses obstáculos. Ele requer apenas a fantasia e a intuição para preencher essas lacunas, pois subsistiu um texto suficiente para imprimir sentido de continuidade significativa aos acontecimentos da história e da totalidade de um processo interior por trás do mito.
Ao trabalhar com o material, fiz uso de todas as traduções disponíveis em alemão, francês, holandês e, em inglês, da tradução poética em hexâmetro inglês de R. Campbell Thompson, da tradução E. A. Speiser, em Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (textos antigos do Oriente Próximo relativos ao Antigo testamento) e The Gilgamesh Epic and the Old Testament Parallels (A Epopéia de Gilgamesh e paralelismos do Antigo testamento), de Alexander Heidel. Este último é o texto que irei seguir em grande parte. Heidel apresenta boa e ampla introdução ao texto, e introduz na íntegra o paralelismo da Antiga Babilônia e os textos hititas, onde aparecem lacunas na versão padronizada. Não concordo com suas idéias a respeito dos paralelismos do Antigo Testamento, e esta parte foi de modo geral criticada, porém, quanto ao texto e à sua publicação, ambos são considerados de boa qualidade, muito bem processados e confiáveis.
Lamento dizer que meu estudo sobre a linguagem acadiana e sobre os escritos cuneiformes não tenha avançado o suficiente para me possibilitar basear minha pesquisa sobre o texto original. Considero também que tenho passado por alto alguns fatos psicológicos que poderiam ter-se revelado apenas para alguém que possui conhecimento mais profundo sobre a linguagem. Devo, portanto, pedir a indulgência do leitor a esse respeito. Entretanto, o número relativamente elevado de traduções cientificamente valorizadas parece ter-me garantido a tentativa para uma explicação psicológica.








A epopéia de Gilgamesh
(Valéria de Oliveira)








Você sabe qual foi a primeira história registrada na forma escrita? Engana-se quem acha que foi A odisséia de Homero. Segundo arqueólogos, a epopéia de Gilgamesh é a obra mais antiga de todo o planeta. Foi escrita em sumério cerca de 2.600 a. C. Os sumérios foram os mais antigos habitantes da Mesopotâmia e inventaram a escrita cuneiforme (em forma de cunha). O texto foi encontrado entre 669-626 d.C. na biblioteca de Assurbanipal em sua versão Assíria. Consta de 12 tabuletas, sendo que a última foi retirada de várias traduções por razões lingüísticas e arqueológicas.
O texto conta as aventuras do histórico rei de Uruk: Gilgamesh, "Sha nagb imuru" ou "aquele que tudo viu". O rei é um herói, um ser superior:
"Dois terços dele são deus, um terço dele é humano. Seu corpo é perfeito, os deuses o completaram. E sua mãe, Ninsun, ainda a dotou de beleza. (...) No recinto de Uruk ele vivia (...) com força tão grande como a de um boi selvagem" (Os trechos entre parenteses com reticências são trechos em que as tabuletas não puderam ser traduzidas).
Gilgamesh precisa enfrentar um ser feito à sua réplica, Enkidu. Ele é o deus da vegetação, um humano sem a marca da humanização. Após uma luta de força, tornam-se amigos e viajam enfrentando perigos e vivendo várias aventuras.
A epopéia é uma obra que tem como objeto o homem superior. É feita em verso em metro único e forma narrativa. A métrica, de verso heróico, é construida com vocábulos raros e metafóricos. Não há limite de tempo, ao contrário da tragédia. A estrutura é composta pelo reconhecimento, as peripécias e as catástrofes.
Os estudos mostram que a obra é na realidade um mito que foi transmitido por via oral e que era conhecido desde o sul da Babilônia até a Ásia menor.
A Epopéia de Gilgamesh aqui no Brasil pode ser lida pela versão da Editora Martins Fontes. Vale a pena não só pela aventura, mas pela viagem fascinante ao mundo dos grandes deuses pagãos.
A saga de Gilgamesh
Esta obra, baseada em figuras reais, conta a luta de um rei na sua busca pela imortalidade.
Gilgamesh foi um dos reis de Uruk, cidade-estado (hoje em dia Warka, Iraque), da primeira dinastia depois do dilúvio babilônico, na Mesopotamia, em meados do terceiro milênio a.C.
Esta história chegou até nós porque se descobriu a biblioteca do rei babilônico Asurbanipal (668-627 a.C.), em doze tábuas incompletas escritas em linguagem acádia em Nínive. De maneira indireta, tem uma descrição quase exata da história de Noé e o dilúvio Universal e da amizade entre Davi e Jonata; e na literatura grega, a união de de Aquiles e Patroclo.
A literatura suméria, na antiga Mesopotamia é a mais antiga da historia. Milhares de cilindros, selos e tabuletas de argila foram descobertas, porém so cerca de 10% pode ser considerada literatura mesmo, de ficção.
Alem disso, os judeus, durante o primeiro exílio babilônico, foram fortemente influenciados pelas lendas e mitos sumérios, babilônicos e mesopotâmicos, preservando muitas destas informações através do Velho Testamento.
O épico de Gilgamesh é composto por 12 tabuletas. Na primeira é explicada a conformação divina de G, que era 2/3 divino e 1/3 humano. Foi construtor e guerreiro, mas era um sacana, tirano e despótico. Os deuses, atendendo as suplicas do povo oprimido, enviam Enkidu, meio humano, meio animal, para que enfrente G e o mate. A luta, mesmo terrível, não deu em nenhum vencedor. Ao contrário, os dois ficam amigos e partem para aventuras e enfrentamento de outras bestas.
Já longe de Uruk, enfrentam Huwawa, o guardião divino dos bosques de Cedro. Faltam partes das tabuletas que contam essa parte da história, mas se deduz que G corta o bosque, derrota Huwawa.
Voltando a Uruk, Ishtar, a deusa do amor e deidade da cidade lhe propõe casamento. Mas G, sabendo do destino dos homens que se unem a ela, recusa. Ishar, doida da vida, convence seu pai que envie um tal de touro celestial para matar G. contudo, ele e Enkidu enfrentam o monstro e e o derrotam. Enkidu é castigado e num sonho, três deuses, Anu, Ea e Shamah, dizem-lhe que vai morrer. Em seguida, adoece e morre. Gilgamesh, desconsolado chora a morte de seu amigo e parte numa perigosa viagem em busca do
sabio Ut- Napishtim, possuidor do segredo da imortalidade e único sobrevivente do diluvio babilonico. Igual ao da Bíblia. Ut-Napishtim é justo e piedoso em meio a barbárie e injustiça. Os deuses o advertem que construa um barco no meio do deserto e espere o pior. Durante 6 dias e 6 noites desata o aguaceiro, tão poderoso que até mesmo os deuses de assustam. Com as aguas acalmadas, surge a nova Mesopotamia, da qual G é parte. Contada a história do diluvio, Ut-Napishtim, que é imortal, explica onde conseguir a planta que lhe dará a juventude eterna: está no fundo de um lago. G vai buscar a tal planta e, como sempre, triunfa. Mas ao voltar a Uruk, uma serpente lhe rouba a planta milagrosa e ele acaba chorando amargamente a perda da imortalidade


A epopeia de Gilgamesh é a mais antiga epopeia da humanidade. É uma imensa obra poética inspirada numa grande diversidade de versos sumérios, compostos no final do terceiro milénio antes de Cristo, e que chegou até nós através de um numeroso conjunto de placas de argila com gravações cuneiformes redigidas no início do segundo milénio antes de Cristo. Segundo a lista real suméria, composta durante a primeira dinastia de Isin, Gilgamesh é o quinquagésimo rei da primeira dinastia de Uruk, geralmente datada da III época protodinástica, ou seja, cerca de 2700 anos antes de Cristo. Para termos uma ideia mais correcta da sua antiguidade, estamos aqui a falar de um texto oriundo do vigésimo sexto século antes de Cristo, um texto com mais de 4700 anos. A versão traduzida é a chamada versão "standard", retirada da versão ninivita do início do primeiro milénio antes de Cristo. Mas tudo leva a crer que a epopeia de Gilgamesh se enquadra num conjunto ainda mais antigo de textos, de uma antiga versão babilónica, nomeadamente na parte narrativa do Dilúvio.
A história que nos é contada é uma história fantástica: Gilgamesh, rei de Uruk, é o herói que, pela sua força, desafia o poder divino e a quem os deuses enviam Enkidu, um guerreiro, para lhe fazer frente. Após um extraordinário combate, os dois conciliam-se, tornando-se Enkidu o companheiro e amigo de Gilgamesh em numerosas aventuras. Gilgamesh convence Enkidu a irem à floresta de cedros matar o gigante Huwawa, protegido do deus Enlil, e terminar, assim, com essa presença maléfica. No regresso vitorioso a Uruk, a deusa Ishtar apaixona-se por Gilgamesh que a repudia. Furiosa, a deusa faz intervir o Touro celéste que Gilgamesh e Enkidu acabam por matar. Isto provoca a cólera dos deuses que decretam a morte de um dos amigos. É Enkidu que acaba por adoecer e morrer para grande desgosto de Gilgamesh. A morte de Enkidu faz Gilgamesh compreender a sua própria finitude e a sua incapacidade de escapar à morte. Gilgamesh parte, assim, à procura do herói do Dilúvio, do sobrevivente do Dilúvio que vive nas margens do oceano mítico, nas extremidades do mundo. Este sobrevivente, Ut-napishtim, faz a Gilgamesh a descrição do Dilúvio e revela-lhe a existência de uma planta, no fundo do mar, que confere a imortalidade. Gilgamesh consegue descer até ao fundo do mar e recuperar essa planta, uma espécie de rosa, mas decide levá-la para Uruk primeiro. Durante a viagem, uma serpente, atraída pelo odor, rouba essa planta a Gilgamesh, deixando no seu lugar apenas uma pele de serpente. Gilgamesh regressa a Uruk e espera a sua morte com angústia.
Na magnífica introdução dos também tradutores Raymond Jacques Tournay (Professor da Escola Bíblica e Arqueológica Francesa) e Aaron Shaffer (Professor da Universidade Hebraica) são abordadas, para além das diversas versões da epopeia de Gilgamesh, as relações do poema épico com a arte mesopotama, com os poemas homéricos gregos e com a Bíblia. Esta é uma edição das Éditions du Cerf.
E outra vez Gilgamesh
«Gilgamesh, tu és jovem e a tua coragem leva-te longe demais; não podes saber o que significa a empresa que planeias. Ouvimos dizer que Humbaba não é como os homens que morrem; as suas armas são tais que ninguém pode erguer-se contra ele. A floresta mede dez mil léguas em cada direcção; quem desceria de vontade a explorar as suas profundas? Quanto a Humbaba, o seu rugido é como a torrente da tempestade, o seu hálito é como o fogo e as suas mandíbulas são a própria morte. Porque anseias tu fazer isto, Gilgamesh? Não é combate igual o que se trava com Humbaba, que é semelhante a um aríete.
Quando ouviu estas palavras dos conselheiros, Gilgamesh olhou para o seu amigo e riu-se:
Como haverei de responder-lhes? Dir-lhes-ei que tenho medo de Humbaba, que ficarei sentado em casa o resto dos meus dias?
Então Gilgamesh abriu de novo a sua boca e disse a Enkidu:
Amigo, vamos ao Grande Palácio, a Egalmah, e ponhamo-nos de pé diante de Ninsun, a rainha. Ninsun é sábia e de profundo conhecimento; ela nos dará conselho sobre o caminho a seguir.
Deram-se as mãos no caminho para Egalmah e dirigiram-se para Ninsun, a grande rainha. Gilgamesh aproximou-se, entrou no palácio e falou a Ninsun.
Ouve-me, Ninsun: tenho uma longa viagem a fazer, à terra de Humbaba; tenho de seguir por uma estrada desconhecida e travar uma singular batalha. Desde o dia em que partir até regressar, até que chegue à floresta do cedro e destrua o mal que Shamash abomina, roga a Shamash por mim. (...)»





A Mesopotâmia, berço da humanidade

Cenário da ascensão e queda de vários impérios, morada de uma civilização que legou para o mundo os modelos de agricultura, comércio, artes, navegação e escrita, território onde hoje é o Iraque, mais uma vez sofre com os horrores da guerra. Segundo um relatório preparado pelo Museu Britânico, as forças lideradas pelos Estados Unidos naquele país causaram “danos substanciais” às ruínas da Babilônia, fundada há 4.000 anos, e célebre por seus famosos jardins suspensos, uma das sete maravilhas do mundo antigo.

Durante 21 meses de ocupação, veículos militares das tropas norte-americanas e polonesas teriam destruído calçamentos de 2,6 mil anos de idade. Fragmentos arqueológicos foram usados para encher sacos de areia quando uma base militar foi instalada no local. Algumas áreas da cidade teriam sido cobertas de cascalho para possibilitar o pouso de helicópteros e servir de estacionamento para veículos, comprometendo seu uso para futuras explorações arqueológicas. Rachaduras e lacunas apareceram em um dos mais importantes monumentos da Babilônia, o Portão de Ishtar, do qual alguém teria tentado retirar tijolos decorados.

A cidade foi transformada em acampamento.

“Foi o equivalente a montar uma base militar na Grande Pirâmide do Egito ou em torno de Stonehenge, na Grã-Bretanha”, diz o relatório, publicado pelo jornal britânico “The Guardian”.

O coronel Piotr Pertek, porta-voz do Ministério da Defesa da Polônia, desmentiu o relatório:

“Nem tropas polonesas, nem quaisquer outras sob comando polonês jamais realizaram projetos violando monumentos históricos ou causando sua devastação. “Nossos soldados jamais fizeram quaisquer esforços para fortalecer a segurança do acampamento Babilônia sem consultar autoridades de preservação do Iraque”, emendou Pertek.

Comandantes militares dos EUA estabeleceram uma base na antiga Babilônia em abril de 2003, pouco depois da queda do ditador iraquiano Saddam Hussein. O local foi entregue a 2.500 soldados poloneses cinco meses depois. A força liderada pelos poloneses ocupou a base por cerca de 16 meses até entregá-la para autoridades iraquianas.



Museu britânico ajuda arqueólogos iraquianos




Depois de uma década de bloqueio das Nações Unidas contra o regime de Saddam Hussein, os arqueólogos britânicos atenderam ao pedido de seus colegas iraquianos para elaborar réplicas de algumas das 25.000 tábuas cuneiformes da civilização assíria guardadas no museu em Londres.
As peças originais, ricas em informação e mitos antigos, foram achadas no século 19 em escavações realizadas por arqueólogos da Grã-Bretanha nas ruínas de Ninive, o berço da civilização mesopotâmica.
As tábuas cuneiformes pertenceram à biblioteca do rei assírio Ashurbanipal, que governou a Mesopotâmia entre os anos 669 e 631 antes de Cristo. Entre as peças está a tabuleta da Inundação, que data do século 7º antes de Cristo. Ela relata a épica de Gilgamesh, o governador legendário de Uruk que buscou a imortalidade. O relato contém semelhanças com o Gêneses, ao relatar o encontro de Gilgamesh com Utnapishtim, que como Noé, refugiou os seres viventes em uma embarcação para salvá-los de uma grande inundação advertida pelos deuses.





Apogeu e morte de uma civilização gloriosa

À revelia da ONU, Bush e seus aliados atacam o Iraque em 20 de março de 2003. O mundo assiste, dois anos depois, o cenário de horror, saques, conflitos, assassinatos e barbáries de toda a espécie. As possíveis armas nucleares, motivo primeiro da declaração do conflito, não foram encontradas. O país está sem rumo e mergulhado no caos. Famílias dizimadas. Almas atônitas caminham entregues à própria sorte.

“Devastado, o Iraque de hoje não é nem a pálida imagem de uma das mais antigas civilizações do planeta, com quase oito mil anos de história. Exemplo desse apogeu foi a Babilônia de Hamurábi e dos jardins suspensos”, lembra o historiador Christophe Courau.

“Babilônia, herdeira dos sumérios e dos acádios, brilhou na Mesopotâmia a partir do ano 1792 antes de Cristo até sofrer a dominação assíria. Depois, renasceu mais altiva e mais bela do que nunca em 605 antes de Cristo, com o rei Nabucodonosor. Jamais domada nem domesticada, ela continua alvo de admiração. Sobreviveu, do seu jeito, a sucessivas condenações. Como cidade ou como império. E as imagens e figuras que a ela se ligam não cessam de enaltecer a sua glória: o legislador Hamurábi, a epopéia de Gilgamesh, a torre de Babel (o zigurate Eremenanki), os jardins suspensos, os risonhos palmeirais da cidade fortificada, a porta azul de Ishatar”, relembra o historiador Marc Bergé.

O nome acádio de Babilônia era “Babilim”, a Babel da Bíblia e significava “Porta de Deus”. Esse Deus era Marduk que fora chamado para se tornar um grande deus depôs de Enlil e Anu. Na origem, Babilim não passava de um simples povoado a 100 quilômetros ao sul da atual Bagdá. Mesmo assim tinha o privilégio de estar instalada junto ao Eufrates, não longe das margens do Tigre”, ensina Bergé.

Essa civilização gloriosa legou um código de ética, filosófico e religioso. Um passaporte que nem mesmo o ditador Saddam Hussein e o ensandecido Bush poderão apagar da história.



Iraque, benção e maldição de um lugar


Albert Paul Dahoui
Escritor e pesquisador





Há lugares no mundo que recebem uma bênção e, em seguida, uma maldição. A bênção provavelmente é de origem divina, mas a maldição, sem dúvida, é bem humana. O Iraque é um desses locais em que a benção foi pródiga, mas o homem se encarregou de transformar o mítico Éden em um inferno.

Há cerca de 5.700 anos, a civilização nascia na Suméria, sul do Iraque.

Povos conhecidos como os Obeidas conquistaram a região, fundaram cidades muradas, implementaram novas formas de conviver em sociedade, aprimoraram a agricultura com o represamento dos rios e a construção de canais. Com a invenção do arado, da carroça e de um sem-número de instrumentos, rapidamente, os resultados na agricultura se fizeram sentir. As colheitas cresceram e não havia mais necessidade de tantas pessoas trabalhando no campo. O excedente da população foi para a cidade e os homens tornaram-se comerciantes, artesãos ou sacerdotes. Uma verdadeira bênção dos anunnakis, como eles chamavam seus deuses.

A maldição veio do próprio homem. Ganancioso tinha uma capacidade nunca vista. Os ricos passaram a usar a religião para dominar a plebe ignara, como diria o poeta. Nasceu a magia negra e os sacrifícios humanos. A exploração financeira e a escravidão tornaram-se a tônica daquela sociedade. Para complementar o quadro, a guerra tornou-se endêmica. Uma cidade-estado lutando contra outra e a quantidade de mortos cresceu exponencialmente. O lugar onde a civilização nasceu, também deu origem a todos os horrores da humanidade.

A famosa Mesopotâmia, entre rios como chamariam os gregos, viu nascer, florescer e morrer inúmeros povos.

Primeiro foram os sumérios, depois os acádios de onde despontou Sargão o grande, primeiro homem na Terra a se tornar imperador. Babilônia, que significa cidade de Deus, presenciou os arameus se transformarem nos lendários babilônicos e dominarem o crescente fértil. Séculos depois, os assírios vieram do norte e conquistaram a cidade de Deus. Esses, sim, eram mestres da destruição: chacinavam toda a população, substituindo-a por seus próprios compatriotas ou por uma multidão de escravos.

Até a distante Israel sofreu na mão desses homens impiedosos. Eles foram deportados para a Babilônia e lá, muitos, perderam a identidade cultural. Depois, vieram os persas de Ciro que os libertariam, trazendo um pouco de paz para a região. Mas, nem isso durou muito. Alexandre o grande tomaria a Mesopotâmia dos persas e morreria de dengue hemorrágica, às margens do rio Eufrates.

Passaríamos um tempo enorme falando dos povos que vieram e se foram, até que, no século 20, os ingleses conquistaram esse território dos turcos e, quando partiram, deixaram um país: o Iraque. Na realidade, os ingleses tinham essa mania de estabelecer as coisas sem consultar os povos que lá viviam. Deixaram a Índia e logo houve uma revolução entre os hindus e os muçulmanos. Fizeram o mesmo na Nigéria sem se importar que iorubas, haussas, fulanis e ibos eram de etnias e religiões diferentes e que levariam rios de sangue para se entender, o que até hoje não aconteceu. No Iraque, fizeram o mesmo: juntaram na mesma panela de pressão, sunitas, xiitas e curdos. Tomara que a tampa resista!

Voltando às bênçãos e maldições. Poderia se ter uma terra mais bendita do que um local riquíssimo em petróleo? Isso possibilitaria que seu povo vivesse às largas, mas aí entra a maldição: a ganância do homem. Para sua completa falta de sorte, os iraquianos tiveram como líder Sadam Hussein. Um homem que saqueou mais de 40 bilhões de dólares do povo, levou o país a três guerras, bombardeou com gás letal os curdos e, acabamos por descobrir depois, que só tinha garganta: na hora de enfrentar os americanos, provou ao mundo que era um dos maiores fundistas que já se viu. Não só em termos de corrida de fundo, pois fugiu com o rabo entre as pernas, mas também por se esconder muito bem no fundo da terra, como se fosse um tatu.

Agora, a situação que temos no Iraque me lembra o caso da pessoa com câncer que a quimioterapia matou. A dose foi tão letal que o sistema imunológico não agüentou e um simples resfriado a levou. O mesmo acontece com o Iraque: provavelmente, os americanos em seu afã de defender o mundo livre deram uma dose de the american-way-of-life tão violenta que não eu ficaria nem um pouco surpreso se o Iraque se dividir em três países, após uma violenta guerra civil: um de maioria xiita no sul, outro sunita no meio e o Curdestão, no norte, que a Turquia tanto teme, pois iria desestabilizar a região.

Outro aspecto terrível da atual situação, além dos homens-bomba, da morte de civis e de inocentes é a destruição dos patrimônios históricos e arqueológicos da humanidade. São as duas faces da mesma moeda: a bênção divina e a maldição humana. Até quando o homem será algoz de si próprio? Tudo isso nos leva a pensar sobre a impermanência das coisas. Nada dura para sempre. Quando não é um tsunami, é um terremoto devastador ou uma dessas cheias do Tigre e Eufrates, que foram relatadas como o dilúvio universal.

Todavia, o homem é mais devastador do que qualquer fúria natural. Nada se compara ao efeito tenebroso de uma bomba atômica, dos campos de concentração nazistas e o terror de um Tamerlão, que empilhava o crânio de seus inimigos na porta das cidades conquistadas numa pirâmide tétrica como aviso de que ele era o flagelo de Deus.

De onde vem tal maldição? A primeira resposta é que advém da ignorância do homem. Mas há mais coisas por trás disso. Alguém poderia dizer que se o iraquiano fosse culto, jamais aceitaria um Sadam. Mas o que dizer dos cultíssimos alemães que aceitaram um Hitler? O assunto demanda uma análise mais profunda, o que é impossível para um simples artigo. Fica a pergunta no ar para instigar o leitor.

Para finalizar, quero ressaltar que não acho que o homem seja um ser amaldiçoado. Pelo contrário. No momento em que controlarmos nosso desejo de dominação, de impormos nosso ponto de vista a qualquer custo e, sobretudo, aprendermos a amar a diversidade que compõe a raça humana, iremos nos tornar a bênção que a natureza nós destinou a ser: um deus.

Autor de”O Sucesso de Escrever” e “A Saga dos Capelinos”.

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Ilustração. Athanasius Kircher



A EPOPÉIA DE GILGAMESH






Na Suméria, o Ciclo de Gilgamesh é composto por vários poemas, contendo narrativas diferentes. É provável que o poema tenha sido constituído e recitado oralmente muito tempo antes de registros escritos. Os babilônios reuniram esses poemas e, entrelaçando suas histórias, compuseram a Epopéia de Gilgamesh.



Esta, narra os feitos do famoso rei Gilgamesh, cujo nome consta como o quinto monarca da primeira dinastia pós-diluviana de Uruk, tendo reinado por 126 anos.

Sua existência foi comprovada arqueologicamente: um homem, um rei, chamado Gilgamesh, viveu e reinou em Uruk, em alguma época da primeira metade do terceiro milênio a.C.

O herói é descrito como dois terços deus e um terço homem, pois sua mãe era uma deusa.

Dela, Gilgamesh herdou grande beleza, força e inquietude.

De seu pai herdou a imortalidade. A tragédia do poema é o conflito entre os desejos do deus e o destino do homem.

O primeiro episódio descreve como os deuses arranjam-lhe um companheiro que é o seu oposto.

Trata-se de Enkidu, o “homem natural” criado entre os animais selvagens e rápido como uma gazela. Enkidu é seduzido por uma meretriz e a perda da inocência representa um passo irreversível para a domesticação de seu espírito selvagem. Gradualmente, ele se deixa civilizar até chegar à grande cidade de Uruk. A partir de então, ele só torna a pensar em sua antiga vida de liberdade quando está morrendo, dominado por um sentimento de dor e arrependimento.

Essa história é também uma alegoria dos estágios por meio dos quais o homem atinge a civilização, partindo da selvageria, passando pelo pastoreio, até finalmente chegar à vida urbana.

A grande amizade entre Gilgamesh e Enkidu, que tem início com uma luta corpo a corpo em Uruk, é o elo que liga todos os episódios da história. É Enkidu quem traz notícias sobre a misteriosa floresta de cedros e seu terrível sentinela.

Esse é o tema do segundo episódio:

dois heróis partem em busca da montanha e dos cedros, mas terão o desafio de enfrentar o gigante Humbaba, guardião da floresta. A jornada na floresta e a batalha daí resultante podem ser lidas em diferentes planos da realidade. A floresta é real, algumas vezes identificada com o norte da Síria ou sudoeste da Pérsia.

Mas é também onde localizam-se poderes sobrenaturais e estranhas aventuras.


É ainda a obscura floresta da alma.
As cidades sumérias localizavam-se geograficamente em planícies, por isso os sumérios em suas construções, necessitavam de madeira. Essa procura é a razão de todo o empreendimento de Gilgamesh que desejava ostentar o seu poder e ambição construindo templos e grandes muralhas. A arriscada aventura precisava de proteção divina e é Shamash, o deus-Sol, quem a concede. Humbaba é morto por Gilgamesh e Enkidu e o rei de Uruk é glorificado quando retorna da floresta.



Nesse momento, a deusa Ishtar (da fertilidade e da guerra), “padroeira” de Uruk apaixona-se e passa a desejar Gilgamesh. Ao ser recusada, Ishtar vinga-se matando o seu amigo Enkidu. Gilgamesh fica só. Diante de seu destino, também mortal, o grande rei sai em busca da vida eterna. Após muitas aventuras, Gilgamesh percebe finalmente que não é e nem poderia ser diferente dos outros homens. O último episódio narra a morte do rei, que existe apenas na versão suméria. O final da aventura é como um feitiço que se quebra: depois da busca e de um prêmio quase ganho ( a eternidade), tudo volta ao normal com a descrição dos muros de Uruk.

A décima segunda tabuinha traz o esboço de uma cosmogonia, sendo que no original sumério o poema chamava-se Gilgamesh, Enkidu e o Mundo Inferno. Essa parte da Epopéia não parece ter muita relação com o restante das aventuras, mas é lá que encontram-se traçadas as concepções sumérias de criação do cosmos.